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sábado, 22 de setembro de 2012

O VELÓRIO DA MÚSICA BRASILEIRA


A igreja está lotada. Os bancos completamente ocupados e os que chegam aglomeram-se, em pé, na porta da entrada. Na frente, estacionam Land Rovers, Dodges, Camaros, Saveiros e até Fiorinos. O trágico evento reuniu a todos neste velório.
Nos bancos da frente roqueiros das décadas de 1980 e 1990 abraçam-se e choram copiosamente. Integrantes das bandas pop parecem não acreditar no infortúnio ocorrido e, atônitos, apenas se entreolham. Deslocados, num canto, rapazes coloridos arrumam o cabelo, buscando chamar a atenção, sendo que somente suas roupas já servem pra fazê-los se destacar na multidão. Pagodeiros batucam com os dedos na madeira dos bancos, apreensivos. Rappers – em liberdade condicional – ensaiam alguns beach box, com a boca. Funkeiros entram abraçados com mulheres cavalonas e se benzem com whisky e energético. Rompendo o protocolo, pseudo-cowboys permanecem de chapéu de vaqueiro dentro do recinto, enquanto lustram as desproporcionais fivelas de seus cintos. Um destes sertanejos, mais exaltado, fazia sinal para uma jovem cantora de MPB, pedindo que ela, mesmo dentro da missa, fosse ao banheiro para eles se beijarem.
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No púlpito ao lado do altar, Valesca Popozuda, em trajes microscópicos, contrastando com seu macroscópico corpanzil, segura o microfone, lascivamente, quase que lambendo-o, e dá início ao cerimonial litúrgico.
“– Boa noite. O amor pela música (pelo menos aquilo que um dia ela foi) nos reuniu.
Em homenagem as almas do purgatório: Cassia Eller, 11 anos de falecimento. Renato Russo, 16 anos de falecimento. Mamonas Assassinas, 16 anos de falecimento. Tom Jobim, 18 anos de falecimento. Raul Seixas, 23 anos de falecimento. Em especial, à alma daquela que hoje nos deixa. Todas estas intenções ficarão sobre a mesa do altar. Em pé, todos, aclamemos o santo padre, batendo palmas e as mulheres dizendo:  “Agora eu tô solteira e ninguém vai me segurar”.

Saudado com gritos e palmas, Padre MC Catra conclama:
“– Em nome do Créu, do tchu, do lelelê e do Baraberê, Amém.
Irmãos e irmãs, pagodeiros, funkeiros, sertanejos universitários e afins, sejam todos benvindos à esta casa musical.
Vai começar a putaria. Podem sentar; quem quiser pode quicar e rebolar.”
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“– Deus é bondoso. 'Ele nos deu o sol, nos deu o mar, pra ganhar seu coração'. E a Casa de Deus é uma humilde residência; é a morada de felicidade e alegria; é a casa de louvor e de adoração; Ele nos chama para rezar e amar. Por isso, em pé, cantemos o hino número 69 do livro de cânticos”. Discursa o irmão, e beato, Latino.
“Hoje é festa lá no meu apê,
Pode aparecer
Vai rolar bundalelê
Hoje é festa lá no meu apê,
Tem birita até amanhacer”
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Solene, o padre inicia o sermão:
“ – Louvada seja a rima com ‘inho’, que nos reuniu nesse cantinho, a fim de que se possa ficar juntinho, compartilhando deste carinho e vivendo sempre desse jeitinho, devagar, devagarinho, conforme profetizou, assim, o apóstolo Martinho.
Na verdade, vos digo, que todo aquele que canta, mesmo que em forma monossilábica, aos gritos de ‘ai, ai, ai, ai, ai, ai’ ou ‘oi, oi, oi’, louva ao Senhor. E mesmo que não tenha nenhuma concordância musical, enaltece ao Espírito Santo, extrapolando a licença poética como ‘a lua iluminando o sol’ e filosofando, como na passagem do livro de Avassaladores, onde citam que: ‘traição é traição, romance é romance, amor é amor e o lance é o lance’.
Enquanto realizamos a celebração do ofertório – pois temos que pagar ECAD por todas estas citações musicais aqui feitas – cantemos a uma só voz o mundialmente famoso hino, número 12, da folhinha de cânticos”:
“Nossa, nossa
Assim você me mata;
Ai se eu te pego; ai, ai se eu te pego.
Delicia, delicia,
Assim você me mata
Ai se eu te pego; ai, ai se eu te pego.”
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Novamente o Sacerdote Catra, com sua voz rouca, dá prosseguimento à liturgia:
“– Irmãos; na sequência do pente, em verdade vos digo que todo aquele que canta seus males espanta, mas detona com a garganta. E hoje estamos aqui reunidos para nos despedir desta que tão jovem partiu para outro plano astral e deixou entre nós o silêncio de uma nota musical não terminada. Ela que nasceu sob as influências das cortes europeias, mas que cresceu nas senzalas, nos terreiros e nas favelas. Ganhou o mundo com sua batucada contagiante, não fraquejou frente às influências norte-americanas, firmou-se entre as grandes com sua melódica bossa e permaneceu por tantos anos conhecida como MPB, mas que morre ainda jovem e deixará saudade em nossos corações. Que Deus receba em sua morada a Música Brasileira; pois ela faleceu sufocada pelos modismos rítmicos que hoje proliferam-se pelas rádios, festas, shows, redes sociais e todos os demais meios de comunicação como uma praga de gafanhotos, igual aquela que Moisés enviou aos egípcios.
Em respeito à sua partida precoce, façamos um minuto de silêncio”.

Eis que nesse momento, desrespeitando o silêncio fúnebre, um rapaz pergunta, em tom relativamente alto, para a moça ao lado:
“– Vamos embora daqui? Por que o jeito é dar uma fugidinha com você”.

Nem após sua morte a Música Brasileira parece ter encontrado descanso e respeito.
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Na saída da igreja carros de som tocavam toscas paródias políticas. É ano de eleição.
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2 comentários:

Adir Neves disse...

F A N T Á S T I C O Professor ! O tempo que vivemos é de uma pobreza musical incrível. Parabéns ! Penso exatamente assim. Abraços !

Nando Tarrago Moura Neto disse...

Descreveu todo cenario da musica perfeitamente que chorey lacrimas com C e y xD